terça-feira, 14 de outubro de 2014

Os Garotos Perdidos

Mesmo com o carinho que sinto pelos filmes infanto-juvenis vindos da Hollywood dos anos 80 (Clube dos Cinco, Conta Comigo, Curtindo a Vida Adoidado, dentre muitos outros) a experiência de rever um filme desses não deixa de ser tensa. O desenvolvimento cinéfilo tende a ser cruel com as primeiras incursões do sujeito ao cinema. Com um pouco de sorte, alguns ainda conseguem encontrar toda a excitação e urgência que havia em alguns títulos. Fazendo com que esses sejam ainda mais valorizados pela memória. Felizmente, Os Garotos Perdidos se ampliou em várias maneiras desde sua ultima revisão.

Família se muda para região costeira. Michael (Jason Patric), o filho mais velho, passa a se relacionar com um grupo de garotos marginais, enquanto que Sam (Corey Haim), o filho mais novo, faz amizade com dois meninos geeks que desconfiam que existam diversos vampiros na cidade. Simples em sua premissa, Garotos mostra o choque de universos em seus primeiros momentos e em seguida, ao maravilhoso som de “People are Strange”, evidencia todo o caráter multicultural, surreal e grotesco que habita sua diegese.

Se a história dos vampiros góticos versus nerds representava a epítome da Sessão da Tarde para mim, agora ela é uma narrativa largamente mais interessante no campo estético e político. O entretenimento bem polido ainda está lá, porém sua humanidade transparece pela primeira vez. Joel Schumacher pode até ter perdido a mão em suas ultimas obras, mas aqui ele demonstra um talento nato parar criar um Blockbuster soturno e inteligente, tão relevante em sua mensagem “Different Strokes for Different Folks” nos anos 80 como é agora. Se o Vampirismo é usado como maneira de tornar o filme mais rendável, sua utilização não remete à artificialidade de clichês baratos em outras representações. Em vez disso, se conecta diretamente a um dos estilos visuais e musicais que estava em moda na época, o gótico; afim de caracterizá-los como indivíduos singulares e estranhos na sociedade vigente.

Astros de rock, arruaceiros, crianças sem pais, os Vampiros liderados por David (Kiefer Sutherland) são hedônicos como forma de caminharem por uma ordem que os repudia não por conhecer sua real natureza, mas por representarem algo novo, ofensivo e incompreensível. É uma defesa da subcultura noturna e da individualidade do ser como maneira de luta pela sobrevivência em um habitat que é hostil a diferenças. O ar de tragédia e melancolia é construído por momentos sutis onde sombras expressionistas seduzem o espectador para esse mundo underground e o faz sentir simpatia, e até nostalgia, pela juventude perdida e cheia de raiva. A obra ainda ganhar contornos políticos com o Mini Esquadrão Caça Vampiro promovido pelas crianças do filme, sendo elas defensoras do “jeito americano de ser” e usando-o como escudo em sua caçada aos outsiders. Em menor escala, o filme pode ser lido como um alerta contra o fanatismo e moralismo da sociedade. Os mortos vivos se tornam uma alegoria sagaz para os excluídos da política conservadora e ufanista que Ronald Reagan lançou nos EUA na década de oitenta. Esses comentários fazem com que os vampiros não se tornem efetivamente os antagonistas e a obra afasta tal maniqueísmo redutor e comum a vários filmes hollywoodianos.


Os Garotos Perdidos confere espaço a todas as diferentes tribos que povoam seu universo, necessitando de certo tempo para melhor compreender o cerne do filme. Seu desenvolvimento se dar tanto por momentos cheios de sensibilidade e beleza infantis, como por cenas carregadas de desejos e frustrações adolescentes que seriam bem típicas da histeria bem aplicada de Nicholas Ray. A soma desses elementos provavelmente foi o que garantiu ao filme sua longevidade e jovialidade após mais de 20 anos. Mostrando que seja no moralismo ingênuo das crianças ou na tragédia dos vampiros, temos um pouco de cada.



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segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Still the Water (Futatsume no mado)

The Water´s Clear and Innocent.

Os tambores rufam, o vento sacode as árvores, as ondas do mar rebatem na areia, um menino encontra um cadáver boiando na praia. Still The Water (Futatsume no Mado) é meditativo, cru, belo e agressivo em proporções igualitárias. Uma obra de conhecimento milenar que se enraíza nos dilemas humanos para fornecer uma experiência que os transcenda para além de suas dimensões.

Lidando com temas tais como o amadurecimento, o aparecimento do amor e a inevitabilidade da morte, Still The Water não estuda tais eventos separados uns dos outros. Em vez disso, os compreende como causas naturais para a própria vida acontecer. O olhar da diretora Naomi Kawase se estende para o continuo movimento do ciclo da vida. Originando um filme que absorve a natureza como parte intrínseca de si, revelando em suas regras e contradições uma ordem espiritual, ancestral e comum a tudo e a todos.

Não existem momentos desperdiçados ou mal aproveitados, Still The Water seria uma obra presunçosa se não tivesse uma direção tão segura e centrada, baseada no respeito e humildade que Kawase sente pelos dramas que aborda. Para isso, ela constrói uma linguagem contemplativa e de caráter sensorial, assemelhando-se bastante a um documentário (estilo não estranho à diretora), que capta perfeitamente o despertar e o fim da vida. Esse ritual é pontuado pelo som do mar e do vento como signos frequentes de uma metafísica que busca alcançar o sublime através dos medos, frustrações e expectativas dos protagonistas.

Still the Water é um raríssimo caso de um filme que se desenvolve fora do que está imageticamente apresentado. A crueza e até aridez com que os personagens se desenvolvem ou até o ritmo contemplativo da narrativa podem afastar alguns, mas é inegável que a obra carrega em si toda a infinidade, beleza e tragédia do que nós rodeia. 


             Música do título:
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quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Garota Exemplar

De todos os herdeiros cinematográficos que Alfred Hitchcock deixou, David Fincher é meu favorito. A alcunha de “herdeiro” não é à toa, o diretor possui um cuidado meticuloso com a progressão narrativa de seus filmes e sabe muito bem manipular as emoções do espectador à la Hitchcock. Resultando em obras bem polidas, com roteiro bem mastigado e de personagens interessantes e carismáticos. Em suma, trata-se de um dos melhores a serviço de Hollywood. Por isso, minhas expectativas em relação à Garota Exemplar eram altas. Amy (Rosamund Pike) desaparece no seu aniversário de cinco anos de casamento com Nick (Ben Affleck). Não demora muito para o desaparecimento de Amy se tornar manchete de todos os jornais, com Nick sendo o principal suspeito. Um thriller bem ao estilo Fincher, Garota Exemplar mantém boa parte das características que sempre me atraíram no cinema dele, bem como algumas que não me entusiasmaram tanto.

A primeira parte é espetacular, maquiavelicamente arquitetada com cortes rápidos e tensos, para o espectador ser imerso no clima de dúvida e discórdia acerca do desaparecimento da protagonista. Personagens de intenções duvidosas, flashbacks inspirados, bons diálogos e ótimo ritmo. A combinação essencial para a platéia se manter ansiosa e atenta a cada nuance comportamental de Nick. É o inferno matrimonial tratado de maneira rebuscada para que os personagens sejam respeitados como pessoas de falhas e virtudes que podem ser, ou não, capazes de tudo quando acuadas. Fincher entende a importância dos protagonistas para uma narrativa dessas fluir e confere total confiança para Pike e Affleck adicionarem dramaticidade a obra, felizmente eles conseguem. Soma-se a uma ótima trilha sonora encabeçada por Trent Reznor e tudo está em seu lugar, os dramas funcionam e a atmosfera de “Caça as bruxas” é perfeita. Fincher tem a platéia em suas mãos.

Os incômodos começaram na segunda parte, mais redundante e de ações mais maniqueístas. Existe uma mudança clara (evitando grandes spoilers) no ritmo e desenvolvimento do filme, o quê em si não necessariamente configura-se em uma falha. Porém no caso de Garota Exemplar, tive sérios problemas com o tom histérico que o filme passa a ter. O ar de mistério se dissipa e dar lugar a uma brincadeira de mocinhos e vilões que se prolonga bem mais do que o necessário. O filme passa a se concentrar na alegoria do casamento de aparências como uma forma de atacar diretamente o jornalismo sensacionalista e Amy se torna o arquétipo da mulher vingativa unilateral, indo contra sua persona incompleta e sedutora da primeira parte, se assemelhando a uma vilã de novela mexicana.

Existe uma aceitação tão calorosa do segundo ato, indo até o fim do filme, com o lado repulsivo adquirido por seus personagens que essa histeria se torna uma força estética em si. É um desfile de personagens representativos do que há de pior em cada um de nós. Garota Exemplar vai de filme noir para a loucura de um Pink Flamingos (sem teor escatológico), perde seu caráter intimista e ganha dimensões grotescas e sociais que podem funcionar com outros espectadores, porém em minha percepção acabou inutilizando boa parte do suspense construído anteriormente. É visível que já em sua metade não há novas direções que o filme possa seguir, tornando-o bem mais descritivo do que interessante. Talvez ainda seja um filme que exige maturação para melhor ser absorvido, quem sabe esses problemas desapareçam em uma futura revisão.


Porém mesmo com minha decepção a partir da primeira hora, Fincher não deixa de criar cenas sensoriais bonitas que tornam o filme um deleite para os olhos. Com a insanidade matrimonial se revertendo em imagens provocantes e reflexivas ao espectador, especialmente para aquele que possui uma visão ingênua do termo "briga de marido e mulher ninguém mete a colher". A naturalidade e delicadeza transmitida pelos protagonistas os tornam tão criveis que quando o vermelho pulsante do sangue é mostrado, o contraste buscado por Fincher entre realidade e aparências é belamente transmitido. Garota Exemplar pode não figurar entre os meus favoritos, mas a direção competente e os temas pertinentes garantem que ele figure entre os melhores pipocões que Hollywood fez esse ano.

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